A RUA COMO ESPAÇO TEATRAL I
O Espaço da Transgressão
Tradução de Jorge Valmini
O DESENVOLVIMENTO DOS USOS DA RUA NA CIDADE OCIDENTAL
Para
estudar o desenvolvimento da linguagem do teatro de rua como fenômeno marginal
e transgressor por excelência, é necessário compreender o processo de
transformação da rua como espaço cênico e as implicações sócio/culturais
próprias deste espaço.
Dentro
do processo de desenvolvimento urbano da cidade ocidental, desde a Idade Média
até nossos dias, as ruas tiveram diferentes usos. Nascidas como vias de
trânsito dos habitantes da cidade, foram adquirindo diferentes funções, de
acordo com as necessidades de seus usuários e com o ritmo de crescimento
urbano.
O
espaço urbano, continente físico da vida da cidade, gera uma intrincada e
complexa rede de vínculos e relações sociais. Este espaço urbano é segundo o
geógrafo brasileiro Roberto Lobato Corrêa, “o reflexo do social às vezes é
também condicionador da sociedade. Este condicionamento se dá através da
relação que as formas espaciais cumprem na reprodução das condições da vida
social. Portanto, o uso social da rua é parte deste fenômeno dialético: o
desenvolvimento da morfologia da rua, está estreitamente vinculado com o
repertório de usos a qual esta submetida a rua.
O
uso da rua nasce da atividade interativa dos habitantes da cidade e da
identificação do contexto cultural de uma rua depende o conhecimento de uma
seleção de usos da mesma. É dizer que, para analisar as características
transgressoras do espetáculo teatral de rua em nossa sociedade é necessário
atentar para uma compreensão do processo de formação da cultura do uso da rua,
pois, a representação teatral de rua – como parte do repertório de usos – se
desenvolveu dialeticamente com as transformações estruturais da cidade e de seu
contexto sócio/cultural.
Como
o espaço urbano da cidade capitalista encontra, segundo diferentes
historiadores do urbanismo, sua matriz original nas cidades medievais, a
análise dos usos da rua na cidade capitalista exige um breve estudo do
desenvolvimento histórico do espaço urbano da Idade Média e da Idade Moderna.
A
cidade medieval
A
RUA COMO ESPAÇO SAGRADO
Uma
das características fundamentais da CIDADE MEDIEVAL foi à existência de
muralhas protetoras. Neste ambiente fechado a comunidade se organizava sob a
influência e o controle da Igreja Católica; e isto se manteve assim durante
grandes períodos históricos.
A
cidade medieval contou com mais espaços abertos utilizáveis do que qualquer das
cidades que a sucederam. Está cidade tinha jardins e praças comunitárias que
eram destinadas a diversos fins segundo a necessidade do momento. O intrincado
traçado das ruas estava tão incorporado a vida dos habitantes e da comunidade
que era completamente funcional e familiar.
Nas
amplas praças e nas estreitas ruas se realizavam os grandes eventos sociais. As
procissões e as representações dos Mistérios, os acontecimentos de rua mais
importantes do período, convocavam a totalidade dos habitantes da cidade. A rua
adotava nestas manifestações a forma de um espaço consagrado, próprio para a
realização dos rituais cristãos, e se confundia com o templo. Como disse o
urbanista Lewis Mumford: “Com a presença de atividades práticas, a cidade
medieval era, sobre todas as coisas, em sua vida atarefada e turbulenta, um
cenário para as cerimônias da igreja”. O traçado e a dimensão das ruas
consideravam o homem como a figura central do espaço, pois estas cidades
estavam organizadas especialmente para o trânsito pedestres: suas medidas
tinham como referencial o homem caminhante cotidiano. O indivíduo só ocupava um
segundo plano quando a rua se transformava em cenário dos Mistérios e dos
Milagres. Nestas ocasiões se organizava o deslocamento de grandes massas de
pessoas que congestionavam as estreitas ruas, valorizando ainda mais o evento.
A
vida do medieval, impregnada de liturgia, apresentava por um lado uma face
oculta: as atividades desenvolvidas no interior das casas e templos, que
correspondiam aos pequenos círculos sociais e as relações familiares; e por
outro lado, sua face visível, cuja a chave era “... o espetáculo em movimento
ou a procissão; e acima de tudo, a grande procissão que dava voltas pelas ruas
e praças antes de ir desembocar finalmente na igreja ou na catedral....
A
hierarquia católica – a instituição de maior importância nas atividades de rua
– concentrava o poder sobre a realização de eventos cerimoniais. Sem dúvida, se
destacava a atividade das corporações de ofícios que atuavam
intensamente nas cerimônias religiosas, especialmente aquelas relacionadas com
seus próprios patronos, as quais ocorriam ordenadas segundo sua hierarquia,
respeitando os diferentes espaços correspondentes as outras corporações. As
incipientes formas de governo municipal também intervinham no eventos.