Fernando Peixoto
UM TEATRO FORA DO EIXO
Fernando Peixoto reúne neste livro,
lançado em 1993, matérias publicadas em dois jornais: O Correio do Povo e Folha da
Tarde entre 1953 e 1963. Em Porto Alegre Fernando Peixoto olha para o
teatro no Rio Grande do Sul do Brasil e do mundo.
A DESPEDIDA DE ABUJAMRA
“Num balanço
geral, o movimento de teatro amador de 1957 não foi dos mais animadores. Muito
em quantidade, mas os resultados não foram muito consideráveis, salvo algumas
poucas exceções.
Os problemas
são muitos, é natural, alguns diminuíram, outros apareceram ou aumentaram, e
não há espaço para nos determos nisso. Boa parte poderia ser resolvida com um
pouco mais de boa vontade e compreensão de muitos. Poderia haver união, não
para formar um só conjunto mas para uma federação, capaz e realizadora, solução
para muitos problemas coletivos. A FRAT até então existia mas não era nada. Com
a posse do atual presidente, Sr. Jairo Juliano, a coisa melhorou e vai melhorar
ainda. Algumas iniciativas foram realizadas, a exposição teve sucesso e foi a
primeira coisa feita em conjunto visando uma aproximação maior do público.
Ainda prosseguem, já em menor
número, os grupos menores, aqueles que insistem num repertório indigno de um
teatro amador, fazendo teatro para passar tempo ou então com se organiza uma
festa, alheios as responsabilidades e sem pensar nas conseqüências. É
inadmissível que um grupo amador não tenha um repertório de classe, com peças
escolhidas entre autores modernos e antigos, mas de categoria indiscutível. Não
é possível continuar a perdoar os que estão de olhos vendados e não querem ou
temem desvendá-los. São dedicados, boas pessoas, esforçam-se, mas não produzem
nada nem vão produzir. Estão prejudicando os outros, afastando público ou mantendo
uma pequena platéia dedicada na ignorância do que é teatro. E que fazer com os
que apresentam peças de classe e não sabem como fazê-las, deturpando e
prejudicando o autor? A escolha de repertório deste ano revelou desordem e
desorientação. Alguns, depois de um bom texto, apresentavam um horrível.
Outros, alheios às suas forças, lançavam-se a empresas arrojadas, peças para as
quais estavam limitados por falta de elementos, financeiramente ou talvez mesmo
intelectualmente. Restou o consolo de uns poucos que estão decididos a não
ceder!
Continuamos sem uma escola de
teatro. Esta falta traduz-se na prática na presença em nossos melhores
conjuntos de elementos que não sabem caminhar, mover-se, gesticular ou falar em
cena. Falta preparo físico e intelectual. Resta ler tudo sobre teatro
(felizmente há muitos livros em espanhol, já que em português são poucos, tanto
teóricos como textos), e continuar autodidata, como é praticamente toda a atual
geração do teatro brasileiro. Ir praticando teatro, não em exercícios de
escola, mas já diante de um público ávido e com a responsabilidade assustadora
de criar uma personagem e defender a idéia de um ator. Isso deveria ser levado
muito mais a sério.
Muitas experiências continuam sendo
feitas para formar diretores. Alguns deram certo, outros não. Trazer
profissionais para dirigir continua sendo uma necessidade e uma dificuldade,
pois nem sempre as condições financeiras permitem. O teatro vai vivendo sem
auxílio, e a renda da bilheteria (quantos convites, meu Deus, os amigos não
querem pagar e levam vizinhos e parentes destes...) quase nunca cobre a despesa
da montagem. O prejuízo é quase constante, na maior parte dos grupos.
No final de dezembro, o teatro
gaúcho fica desfalcado de um de seus mais vibrantes e combativos animadores e
artistas: Antonio Abujamra embarca definitivamente para São Paulo. No dia 26
publiquei uma rápida entrevista com ele, feita poucos minutos antes do
embarque:
Vai embora mesmo?
A – Vou.
Contente ou não?
A – Contente?...
Pretende voltar?
A – Claro que sim, mas não creio.
Tentará fazer teatro em São Paulo.
A – Penso não fazer. Mas dizer não para o teatro é difícil.
Em sua opinião, em que estado está o teatro amador gaúcho?
A – Procurando. Às vezes erradamente, às vezes não. Mas o
mal é que os dirigentes não sabem escolher entre Joracy Camargo e Arthur
Miller, então acabam levando Bloch... Eles confundem tudo.
Será que sai a escola de teatro na universidade?
A – Deve sair. Acho ótimo, claro.
O que fez de pior em Porto Alegre?
A – Meu coração balança... Laertes (Hamlet), Augusto (Uma mulher
e três palhaços), Agazzi (Verdade de
cada um)...
E de melhor?
A – Ator: Tom Wingfield; direção: À margem da vida e A cantora
careca.
O que gostaria de ter feito?
A – Brecht, Arthur Miller e os gregos...
Vai continuar declamando?
A – Não enche, Fernando... (sic)
E os críticos de Porto Alegre?
A – Quais? Não existe nenhum trabalhando em jornal.
Deve-se continuar a trazer diretores do Rio, ou ficar só
com os daqui?
A – O melhor é continuar a trazê-los, são necessários. Mas continuar
sempre dando oportunidade aos daqui.
Acredita na possibilidade da união de todos os grupos ou ao
menos dos melhores?
A – Só com um líder realmente ótimo que massacre este
cabotinismo.
Prefere dirigir ou interpretar?
A – Ambos, e escrever também.
Diga alguma coisa sobre os novos autores do Brasil.
A – Uma barbaridade. Ainda titubeiam muito. Mas não se deve
negar o valor a Jorge de Andrade, ao fenômeno popular Ariano Suassuna e... mais
nada. Seria interessante que os poetas se jogassem para o teatro.
O que visa em teatro?
A – A Resposta é um mundo. Provavelmente humanizar.
CHEGA RUGGERO JACOBBI: AULA
INAUGURAL DO CAD
Ruggero
Jacobbi chegou dia 14 de março, acompanhado da esposa, a atriz Daisy Santana.
Foi recebido no aeroporto Salgado Filho pelo professor Luiz Pilla, da Faculdade
de Filosofia, pelo professor João Francisco Ferreira, o escritor Paulo Hecker
Filho, o casal Menna Barreto, dois representantes do Teatro Universitário
(Linneu Dias e Marcello Bittencourt) e pela reportagem da Folha da Tarde.
Na edição
de 26 de março, a minha manchete é: Abertas as inscrições para o curso de
teatro da URGS. São anunciados dois cursos: o Curso de Arte Dramática e o Curso
de Cultura Teatral. O primeiro, com trinta vagas, para a formação de atores,
requerendo um exame de admissão de caráter vocacional; o segundo, dirigindo-se
a todos os interessados em adquirir um conhecimento da arte teatral como
leitores ou espectadores, dispondo de 120 vagas.
Numa entrevista,
publicada em 1º de abril de 1958, revela-se a biografia de Ruggero: começou em
jornalismo com 16 anos, adquiriu prestigio como critico literário, apaixonou-se
pelo cinema, escreveu argumentos e roteiros, foi assistente de direção de
filmes e dirigiu documentários de arte na Itália. Em teatro começou dirigindo o
Teatro Universitário de Roma e tinha como atrizes/alunas, entre outras, Anna
Proclema e Giuletta Masina. Auton G. Bragaglia convidou-o para ser assistente
de direção do Teatro das Artes, onde começou sua carreira de encenador. A classe
teatral italiana escolheu e elegeu os três diretores da primeira companhia
oficial organizada depois do fascismo: Luchino Visconti, Victor Pandolfi e
Ruggero Jacobbi. Participou ainda da organização do Piccolo Teatro de Milão, e,
em fins de 1946, foi convidado para dirigir um elenco italiano que viria ao
Brasil. Seu assistente de direção era o jovem Alberto D’Aversa, agora em 1958
diretor artístico do Teatro Brasileiro de Comédia em São Paulo. Ruggero veio ao
Brasil. E ficou. Foi, entre os encenadores italianos que trabalharam entre nós,
o que mais influenciou o surgimento de um processo teatral nacional
efetivamente identificado com nossas raízes populares e progressistas. Incansável
batalhador do campo das idéias e da política, participou da fundação do Teatro
de Arena e São Paulo, empenhou-se na batalha por uma dramaturgia nacional e
para abrir espaço para os encenadores brasileiros, com uma lucidez crítica
permanente, dinâmica e instigante, uma generosidade estimulante, uma capacidade
espantosa de despertar o entusiasmo pelo trabalho criativo permanente,
tornando-se pouco a pouco um dos mais profundos conhecedores do processo
cultural nacional e integrando-se ao mesmo, a partir de uma postura marxista, como
companheiro e amigo de todos os que se entregaram à luta cotidiana por uma
sociedade culturalmente livre e soberana.
Mais de
sessenta candidatos se apresentaram para os exames de admissão no Curso de Arte
Dramática. A escolha da primeira turma provocará uma inevitável contradição: serão
desmembrados os principais grupos de teatro amador da cidade, que perderão seus
principais elementos e muitos seus líderes, o que provocará o fim de alguns,
assim como um irrecusável estagnação de parte significativa da produção local. O
preço do avanço. A aula inaugural do CAD e do Curso de Estudos Teatrais,
documento da espantosa lucidez crítica de Ruggero Jacobbi, pronunciada dia 10
de abril de 1958 na Faculdade de Filosofia, intitulada “Introdução à poética do
espetáculo”, marca o início do ensino de teatro na Universidade do Rio Grande
do Sul.