DIONISO!
QUE DEUSA É VOCE?
Dionísio
se destaca de todas as outras divindades gregas. Ele não é um dos olímpicos,
pois apareceu no cenário grego em uma data tardia; tão pouco é ele uma das
antigas deusas como Ananke ou as Moiras. O fato é que Dionísio é uma realidade
nele mesmo, ou talvez devêssemos dizer “nela mesma”, pois nada a respeito de Dionísio
é firme e claro, inclusive sua sexualidade. Às vezes Dionísio parece masculino;
outras vezes suas características femininas emergem com tanta intensidade que
nos perguntamos se o deus é mais homem ou mulher.
Em
conformidade com sua complexa natureza, Dionísio recebeu muitos epítetos. Ele
era chamado purigetes, “o nascido do
fogo,” sukites, “o da figueira,” polygethes, “o cheio de alegria,” e kissodomos, “o da coroa de hera.” Ele
era dendritos, “o deus da árvore,” gunaimanes, “o inspirador das mulheres
exaltadas,” e também era conhecido como phales,
“o amigo do falo,” por razões que analisaremos mais tarde. Além do seu nome
básico Dionísio, cuja derivação é incerta, ele também era chamado Bromios, que
significa pomposo ou turbulento, e tinha o nome místico Iaco. Em Metamorfose, o poeta latino Ovídio
relaciona oito nomes para esse deus de múltiplas facetas.
Dionísio
era um modificador da forma, um deus que podia aparecer com muitos disfarces
teriomórficos. Ele era estreitamente associado ao touro, talvez em decorrência
dos poderes fálicos do touro, e também com a serpente; dizia-se, às vezes, que
as serpentes estavam entrelaçadas em seu cabelo. Cérberos freqüentemente
acompanhavam o deus em seus divertimentos, e ele era amiúde retratado como um
leão cuja forma ele podia assumir a seu bel-prazer. Ele era especialmente
associado ao bode, talvez por causa do seu jeito caprichoso (a palavra
“capricho” deriva da palavra latina carper,
bode (cabra); com efeito, seus seguidores celebravam uma espécie de
comunhão com o deus no qual bebiam o sangue de bodes para assimilar o espírito
do deus.
Dionísio
é um deus paradoxal por excelência. Ele era uma divindade da turbulência, do
abandono e da mais abençoada libertação com relação às muitas repressões da
vida; não obstante, ele não era o deus da ilegalidade, pois ele tinha sua
própria lei para a qual as pessoas eram atraídas, por mais estranha que essa
lei possa parecer a partir de um ponto de vista convencional. Se Dionísio
tivesse sido um deus da ilegalidade, ele talvez tivesse tido como um dos seus
epítetos a palavra grega panourgos,
palavra essa que significa literalmente “qualquer coisa serve” (e que aparece
no Novo Testamento como uma das palavras para o mal indisciplinado).
Entretanto, essa palavra não era associada a Dionísio; ao contrário, ele
ensinava aos mortais que eles deveriam obedecer ao céu, honrar os deuses e
seguir a trajetória da justiça (Eurípedes 1979a, 991 – 1015). Analogamente,
embora um veemente vingador com relação a seus inimigos, ele não era uma
divindade da guerra e sim da paz (419). E embora fosse o deus do vinho e do
prazer embriagado, tampouco era o deus da embriaguez devassa, pelo menos não
até que os romanos o assimilaram e ele começou a aparecer em formas degeneradas
e se tornou conhecido com Baco.
Longe
de ser um deus devasso, Dionísio era um deus com uma missão, missão essa que
ele declarava “ser deus manifestado aos mortais” (Eurípedes 1979a, 22).
Dionísio revelou o divino para a humanidade através de um musterion, um “mistério” no antigo sentido grego de um conhecimento
secreto que só poderia ser conhecido se a pessoa passasse por uma experiência
iniciatória. Esse musterion de
Dionísio era tão profundo que ele importava o entendimento do próprio mistério
da vida. Acima de tudo, Dionísio era o deus da mania, ou “loucura” – loucura essa tão estranha e maravilhosa que
compreendê-la significava tanto o musterion
do deus quanto o significado da própria vida. Antes que possamos supor que
sabemos mais a respeito dessa estranha loucura de Dionísio, contudo, precisamos
saber mais a respeito do deus propriamente dito: suas origens, suas inúmeras
histórias e a natureza da sua atração para os antigos gregos.
O
fato de Dionísio ter emergido na vida da Grécia depois, tanto das divindades
matriarcais quanto dos deuses olimpianos, leva muitos especialistas a acreditar
que suas origens não estavam na Grécia e sim em algum reino distante. Não
existe, contudo, nenhum entendimento entre eles com relação ao local de onde o
culto teria surgido. Alguns dizem que ele é originário da Frigia (Ásia Menor),
onde o deus era associado à deusa mãe asiática Cibele, teoria essa apoiada por
uma alusão aos ritos de mistério de Cibele na peça de Eurípedes sobre Dionísio,
Os Bacanais. Outros, contudo, dizem
que o culto de Dionísio é oriundo da própria Grécia, se bem que de regiões mais
remotas. Do ponto de vista da nossa psicologia, a verdadeira origem de Dionísio
repousa na camada arquetípica da psique humana da qual emerge a imaginação
criativa subjacente a toda mitologia. A partir desse ponto de vista, Dionísio
retrata uma parte integral da nossa vida psíquica inconscientemente, ele
personifica e dramatiza uma energia profundamente implantada na nossa natureza
humana, talvez em toda a vida. Desse modo, a partir dos lugares ocultos do coração
humano, o deus anseia por se expressar – e oferece aos mortais seu tipo
peculiar de liberdade (Eurípedes 1979a, 72–88).
Podemos
especular que o culto de Dionísio explodiu no mundo antigo na ocasião em que o
fez a fim de satisfazer uma necessidade psicológica e espiritual, talvez para
compensar a tendência cultural emergente de se identificar excessivamente com o
racional em detrimento das energias vitais do irracional, as únicas capazes de
trazer liberdade à alma. Mas antes de podermos compreender a natureza dessa
liberdade dionisíaca oferecida pelo deus, precisamos aprender mais sobre este
mais paradoxal dos deuses que era chamado “um deus terrível, porém bondoso para
a humanidade” (Eurípedes 1979a, 861).
Dizia-se
que Dionísio havia sido concebido no útero da mulher mortal, Semele, filha do
herói grego Cadmo, fundador da cidade de Tebas. A semente da qual Dionísio
brotou, contudo, não era de um homem mortal, e sim de Zeus. A história conta
que quando Hera, a mulher de Zeus, soube do caso amoroso entre Zeus e Semele, e
ainda do de Semele ter concebido um filho dessa união, ficou tão furiosa que
concebeu uma trama para destruir a mãe ofensora e seu filho que estava para
nascer. Ela procurou alcançar seu intento persuadindo Semele a rezar para que
Zeus aparecesse para ela em toda a sua divina glória. Semele então rezou, e
Zeus relutante respondeu à sua súplica. No entanto, o esplendor desnudo do deus
era tão grande que Semele foi esmagada pela visão e destruída pelo raio de
Zeus. Ao contemplar a tragédia, Zeus precipitou-se do céu e arrancou a criança
nascitura do útero de Semele; ele colocou então a criança na própria coxa, de
onde, em seu devido tempo, nasceu Dionísio, um homem-deus, concebido no útero
de uma mulher mortal, através do sêmen de um deus, e nascido da coxa de Zeus.
Poderíamos
pensar que Hera teria ficado satisfeita com o castigo que impusera a Semele,
mas segundo outra versão da história, na qual Semele não morre, Hera permaneceu
de tal modo consumida pelo ciúme que levou Semele e o marido desta, Atamas, à
loucura. Zeus confiou então o bebê Dionísio aos cuidados de ninfas que viviam
em uma montanha tão remota que até hoje sua exata localização é desconhecida.
Lá, as ninfas alimentaram a estranha criança com mel silvestre. Este detalhe é
simbolicamente significativo, pois o mel é produto das abelhas, e, dentre todas
as formas de vida, as abelhas são vistas como as mais femininas e matriarcais,
visto que todos os machos são mortos ao nascer, exceto os poucos necessários
para fertilizar a rainha. O fato de Dionísio ter sido alimentado com mel
silvestre enfatiza a poderosa influência do feminino sobre ele desde seus
primeiros dias de vida.
Quando
Dionísio atingiu a idade adulta, ele começou suas andanças. Em uma das mais
antigas histórias a respeito das suas aventuras, o errante Dionísio foi
capturado por piratas e preso ao mastro do navio, mas quando este estava em
alto mar, as cordas que prendiam o deus se soltaram como se por mágica, e uma
videira cresceu misteriosamente em torno do mastro do navio. Dionísio então se
transformou em um leão, que aterrorizou de tal modo os piratas que estes
pularam no mar, onde foram transformados pelo deus em golfinhos.
Nessas
histórias sobre o nascimento de Dioniso e a maneira impressionante pela qual o
deus se viu livre dos piratas, podemos ver tanto a simpatia que as mulheres
tinham por ele – exemplificada pela devoção que sua mãe, Semele, tinha por ele
– quanto seu impressionante poder de mudar de aparência, aparecendo ora em uma
forma ora em outra para despertar o assombro de seus seguidores e o medo no
coração de seus inimigos.
Outra
história que exemplifica os poderes mágicos do deus e seu amor pelas mulheres é
encontrada na lenda de Teseu e Ariadne. Teseu foi o herói grego que libertou o
povo ateniense da terrível tirania que lhes fora imposta por Minos, o Rei de
Creta. Parece que Minos, cujo poder era intensamente temido em todo o mundo
antigo da Hélade, impusera aos gregos um tributo anual de sete rapazes e sete
moças, todos na flor da idade. Esses jovens eram levados para a ilha de Creta e
colocados em um desnorteante labirinto habitado pelo monstruoso Minotauro, com
a aparência de touro, que comia carne humana. O labirinto no qual vivia o
terrível animal era de tal modo intrincado que ninguém que lá entrara jamais
saíra. Encurralados dentro do serpejante labirinto de corredores, os rapazes e
as moças eram logo destruídos pelo Minotauro quando ele vagava pelo dédalo em
busca de vítimas.
Não
obstante, em um determinado ano, as infelizes vítimas foram salvas por Teseu,
que se ofereceu como voluntário quando chegou à época de pagar o tributo anual
ao Rei Minos. A sorte determinou que quando as vítimas chegassem a Creta, a
princesa da terra, Ariadne, contemplasse Teseu e se apaixonasse por ele. Quando
as vítimas do sacrifício, inclusive Teseu, foram conduzidas ao labirinto,
Ariadne (cujo nome é parecido com a palavra grega para aranha – araxne) entregou a Teseu um maravilhoso
fio. Quando as vítimas foram levadas cada vez mais para o interior do
labirinto, Teseu, seguindo as instruções de Ariadne, arrastou o fio atrás de
si. Quando o Minotauro atacou as vítimas, o herói conseguiu destruir o monstro;
depois com a ajuda do fio, ele conduziu os jovens para fora do labirinto e
depois para a liberdade. Ariadne, cheia de amor por Teseu, alegremente deixou
sua terra natal e fugiu com ele para a Grécia. No entanto, Teseu, deslealmente,
abandonou sua benfeitora, largando-a em uma remota ilha deserta. Lá, exilada do
reino do pai e abandonada pelo amado, Ariadne chorou sozinha até ser descoberta
por Dionísio, que a amou, fez dela sua esposa e a levou embora em segurança.
A
história do amor de Dionísio por Ariadne caracteriza o amor do deus pelas
mulheres em geral, muitas das quais respondiam ao seu amor tornando-se
seguidoras dedicadas. Essas seguidoras eram conhecidas com mênades (mainades), nome que significa “as
mulheres loucas,” não porque fossem insanas, mas sim porque estavam repletas do
deus e eram inspiradas por ele. Dionísio também era estreitamente associado a
muitas divindades femininas, como as Cárites, com Afrodite e com as Musas, as
divindades femininas da música, da canção, da dança e das artes, de cujo nome
derivamos as palavras música e museu. Não há dúvida de que por causa da
sua afinidade com as Musas, Dionísio se tornou mais tarde, em sua carreira, o
patrono do teatro; com efeito, a memória do deus ainda é venerada hoje em dia
por muitos atores e músicos.
Dionísio
também era o deus do falo, e em procissões realizadas periodicamente em sua
homenagem, seus seguidores carregavam imagens do falo. A associação entre
Dionísio e o falo está não apenas relacionada com sua habilidade sexual, como
também com a ligação do deus com a natureza. Dionísio é um deus que possui uma
energia vitalizadora, e o falo é o poderoso instrumento que fertiliza o
feminino e promove a vida. Dizia-se que onde quer que o deus fosse, as flores
floresciam e o mundo se tornava verde e exuberante, pois a energia extática do
deus é a própria energia da vida. Vemos aqui, também, a outra ligação entre
Dionísio e Afrodite, chamada alhures nos textos clássicos de “Afrodite amante
do membro.”
Dionísio
também era estreitamente associado ao mais yin
dos elementos: a água. O especialista em assuntos gregos Water F. Otto
escreve o seguinte:
A água é o elemento no qual
Dioniso está à vontade. Como ele, ela revela uma natureza dual: um lado
luminoso, alegre e vital; e um lado sombrio, misterioso, perigoso e mortal...
Dionísio vem da água e a ela retorna... ele tem seu lar e seu refugio nas
profundezas aquosas. (Otto 1981).
Desse
modo, Dionísio partilha da natureza tanto do vinho quanto da água; ele provoca
a dissolução temporária do ego no sono, e através do vinho ele leva alegria à
alma, mas ele também traz consigo muita coisa sombria, misteriosa e perigosa,
bem com vital.
Um
dos maiores dons de Dionísio era o conhecimento da fabricação de vinho, pois
antes da vinda de Dioniso, os mortais não conheciam o segredo através do qual a
uva podia ser levada a produzir seu curativo e intoxicante néctar. Dizia-se que
a dádiva do vinho foi concedida aos mortais pelo deus por causa da agradável
recepção que ele recebeu de Icário de Atenas. Em suas andanças pela terra,
Dionísio era freqüentemente rejeitado, mas Icário o recebeu com hospitalidade,
levou-o para casa, proveu a subsistência dele e, sem pensar em nenhuma
recompensa, tratou-o com generosidade. Em agradecimento à bondade de Icário,
Dionísio deu a ele o conhecimento da fabricação do vinho, e esse conhecimento
logo se espalhou por toda a parte, levando a alegria do vinho para os corações
extenuados com o sofrimento e os problemas da vida.
Entretanto,
Dionísio não dava o vinho no espírito da embriaguez comum; esse era o trabalho
de Baco, que, como já comentamos, era uma versão romanizada e degenerada de
Dionísio. Este não era o deus da extinção da consciência que vivenciamos na
embriaguez, e sim o deus da liberação do espírito e da animação da alma. Não
obstante, se o poder do deus fosse absorvido irresponsavelmente, ele poderia
ser perigoso, motivo pelo qual Dionísio era às vezes representado acompanhado
pelos Silenos, seres paradoxais que eram ao mesmo tempo músicos consumados e
sátiros embriagados. O vinho de Dionísio, contudo, geralmente não provocava o
esquecimento da embriaguez; ao contrário, mitigava as lágrimas da humanidade e
trazia alegria, um deus que embora pudesse ser ameaçadoramente destrutivo para
seus inimigos, sentia uma profunda compaixão pelo sofrimento dos mortais.
Dizia-se portanto que Dionísio era “o Senhor que chorava para mitigar as
lágrimas dos mortais... para que a alegria de homens e mulheres flua a partir
das lágrimas de um deus.”
Existem
muitas outras histórias sobre o deus, inclusive um relato que diz que ele havia
vagado pelo mundo, tendo chegado à Índia, e outro que conta como ele foi
iniciado nos mistério de Réia, outra versão da antiga deusa mãe-Terra
semelhante à Cibele. A história mais importante, contudo, é encontrada na peça
de Eurípedes, Os Bacanais. Se alguém tivesse
que escolher para estudo apenas uma dentre as várias histórias a respeito de Dionísio,
esta peça de Eurípedes se destacaria claramente como a que deveria ser lida. Primeiro
resumiremos a história que Eurípedes nos conta; depois, examinaremos seu
significado.
Quando
a história começa, Dionísio está viajando pelo mundo para ser conhecido, e seu
caminho finalmente o leva a Tebas. Lá, ele é bem recebido por dois homens
idosos, Tirésias, o vidente cego, e Cadmo, que quando jovem foi um famoso
herói. No entanto, quando Penteu, rei da terra, ouve falar na chegado de Dionísio,
rejeita tanto a pessoa dele quanto o fato de ele afirmar ser um deus; ele
despreza o jeito feminino de Dionísio e planeja aprisioná-lo. Além disso,
Penteu desdenha quase tudo a respeito de Dionísio, inclusive o cabelo dele, que
ele chama de “tranças delicadas” que poderiam enfeitar uma mulher:
Os homens dizem que um estranho
chegou à terra,
Um bruxo trampolineiro da terra
da Lídia,
Com tranças douradas nos cabelos
dourados e perfumados,
Animados com o vinho, nos olhos
as graças sedutoras do amor,
Que faz amor dia e noite com as
donzelas,
Fingindo conhecer os mistérios
evianos.
Se dentro destas paredes eu
pudesse aprisioná-lo,
Adeus ao tirso-tamborim, e às
madeixas
Livremente sacudidas; pois seu
pescoço deceparei
(Eurípedes 1979a, 233-9)
No
entanto, o velho e sábio Tirésias reconhece o esplendor e a autenticidade do novo
deus, e lhe dá as boas vindas. Ele nota especialmente as duas grandes dádivas
do vinho e do sono que Dioniso concedeu à humanidade. Tirésias e Cadmo homenageiam
Dionísio, e vestindo trajes de pele de corça juntam-se à dança das mênades na procissão
do deus.
Quando
Penteu vê esses velhos participando da turbulenta marcha, ele zomba dos dois:
Mas vejam, outra surpresa – o vidente
Tirésias vestido com um traje de
pele de corça!
...Uma visão engraçada! (248-51)
Tirésias
não se deixa intimidar e responde ao rei:
Eu e Cadmo de quem tu ris e
escarneces,
Poremos folhas de louro na
cabeça, e dançaremos –
Um par de velhos de barba
grisalha, mas que só podemos dançar. (322-4)
Logo
se torna claro que Dionísio exerce uma atração especial sobre as mulheres, e
que ele as está afastando de seus tranqüilos afazeres domésticos para que, através
dele, elas possam vivenciar uma nova liberdade. A raiva que Penteu sente de Dionísio,
por causa dessa aparente sedução das mulheres do reino, cresce; ele se queixa
especialmente de que Dionísio “enlouquece as mulheres afastando-as do lar”
(662). Justificadamente, Penteu teme estar perdendo o controle, pois inundadas
pelo espírito do deus, as mulheres vivenciam uma nova liberdade; elas se
entregam gloriosamente ao instinto. Intoxicadas pelo deus, elas o seguem para
os lugares afastados da civilização, deixando pra trás a sóbria vida doméstica
e a reclusão a que Penteu as sujeitara.
O
contraste entre a atitude de Dionísio diante das mulheres e a do patriarcal
Penteu é nitidamente traçado na peça de Eurípedes: enquanto Penteu desconfia
das mulheres e tenta regular a vida e os amores delas, Dionísio permite, sem
temor, que elas expressem a sexualidade e o amor à maneira delas:
Dionísio não imporá sobre as
mulheres
A castidade: inata na verdadeira
feminidade
Reside a temperança tocando para
sempre todas as coisas.
Tu deves observar; pois nos ritos
de Baco
Nada de mal acontecerá aos
virtuosos de coração. (315-8)
Inevitavelmente,
a tensão entre Dionísio e Penteu explode em conflito aberto. Penteu envia
soldados para capturar Dionísio; eles o amarram fortemente e o atiram na prisão.
Mas Dionísio facilmente se liberta de seus grilhões e provoca um terremoto que
destrói a prisão e o palácio de Penteu.
Como
devemos compreender o significado desse “mais estranho dos deuses”? O elemento
chave repousa em sua loucura, mas precisaremos nos lembrar de que essa não é a
loucura comum que conhecemos como insanidade. Trata-se, ao contrário, da divina
loucura que os gregos chamavam de mania. Vivenciamos
essa mania quando somos invadidos
pelo espírito de um deus, ou seja, por um poder e inspiração que não derivam do
ego, nem da mentalidade comum, e sim da esfera dos deuses. É dessa esfera que
emerge a verdadeira criatividade.
Esta
divina loucura é o segredo do “mistério” do deus. O “mistério” de Dionísio, que
como qualquer “mistério” é uma experiência de poder na qual a pessoa precisa
ser iniciada, trouxe um “novo impulso espiritual” à religião na Grécia e, conseqüentemente,
à espiritualidade no mundo ocidental. Jane Harrison comenta que antes da
chegada de Dionísio, a antiga religião era um do et dus; “Eu faço, e tu fazes.” Ou seja, o ser humano faz uma
coisa para o deus, como oferecer um sacrifício, e o deus faz algo em troca para
o ser humano (Harrison 1950). O novo espírito de Dionísio transcende essa
estreita e arcaica interpretação do impulso religioso. Não se trata de uma questão
de fazer algo para agradar, serenar ou adular uma divindade para que ela faça o
que queremos; em vez disso, é uma questão de vivenciar a divindade dentro de
nós mesmos.